É impensável nos dias de hoje imaginar produtos vendidos promovendo a radioatividade como sendo boa para a saúde. Mas essa era a realidade na década de 1920. Na época, os efeitos da radiação no corpo humano ainda eram desconhecidos. E mesmo quando os pesquisadores começaram a descobrir que a radiação poderia nos prejudicar, estas descobertas não estavam disponíveis ao público em geral. Com essa mentalidade fica mais fácil entender a saga das Radium Girls, ou garotas do radium.
Depois da descoberta do elemento químico rádio (radium) por Marie e Pierre Curie, houve muito entusiasmo em relação a isso. As propriedades do rádio surpreenderam os cientistas com sua capacidade de brilhar no escuro e irradiar calor.
Logo, descobriu-se que o rádio compartilhava propriedades com os raios X e era capaz de queimar a pele. Tornou-se então popular o uso do rádio para queimar lesões, verrugas e cânceres. Os primeiros pesquisadores chegaram a acreditar que, além de destruir as células malignas, ele promovia o crescimento das células saudáveis. E esse era o problema. Eles acreditavam que era bom, mas não havia pesquisas e dados suficientes para provar isso na época.
Foi aí que começou a “euforia do rádio”. As empresas, aproveitando essa euforia, passaram a vender produtos que supostamente continham rádio. Na verdade, apesar da publicidade de produtos que continham rádio, nem todos o continham porque o rádio era um produto muito caro. Devido ao desconhecimento da época sobre os malefícios que a radiação trazia à saúde, esses produtos tornaram-se muito populares.
Alguns produtos disponíveis no ínicio dos anos 1900
Radithor
Radithor era uma água triplamente destilada contendo rádio. Foi anunciado como “Uma cura para os mortos-vivos” e alegava curar a impotência e outras doenças.
Um rico industrial americano, Eben Beyers, morreu em 1932 devido ao consumo de Radithor. Quando seu corpo foi exumado em 1965, seus restos mortais ainda estavam radioativos. A sua morte levou ao fortalecimento dos poderes da FDA (agência americana que regulamenta a indústria alimentícia e farmacêutica) e ao fim da “era milagrosa do rádio”.
A garrafa de Radithor da foto está exposta no Museu Nacional de Ciência e História Nuclear no Novo México, EUA.
Poudre Tho-Radia (pó facial)
Caixa “pó de Thor-rádia”, “à base de rádio e tório, segundo fórmula do Dr. Alfred Curie”, em exposição no Musée Curie, Paris, França.
Tho-Radia era uma empresa farmacêutica francesa fabricante de cosméticos. Muitos de seus produtos continham rádio e tório, explorando o interesse popular pelo rádio na época. Alfred Curie era um médico sem ligação com Marie e Pierre Curie. Eles até consideraram uma ação legal contra a empresa.
A propaganda da época era de que produtos cosméticos, quando misturados com rádio, estimulariam as células vivas e aumentariam a sua energia, embora nada tenha sido realmente demonstrado cientificamente.
Radium ore Revigator
A imagem mostra um anúncio do Revigator da década de 1930.
Revigator era um pote de cerâmica revestido com materiais radioativos. As instruções de uso diziam que o pote deveria ser enchido com água e durante a noite, para que a água pudesse ser irradiada. Beber essa água ajudaria a prevenir diversas doenças como artrite, flatulência e senilidade.
Foi comercializado como uma prática saudável e a propaganda fez tanto sucesso que a empresa não conseguiu atender à demanda.
Radium Luminous Material Corporation
Luminous Paint
De 1917 a 1926, a Radium Luminous Material Corporation (o nome foi alterado em 1921 para United States Radium Corporation) extraiu e purificou o rádio do minério de carnotita para produzir tinta luminosa. Eles chamaram a tinta de Undark (palavra criada para a tinta que significaria algo como não-escuro) porque os objetos pintados com ela brilhavam no escuro. A fábrica estava localizada em Orange, NJ, EUA, e era uma importante fornecedora de relógios com mostrador fluorescente para os militares.
Além dos relógios, a tinta também era utilizada para pintar instrumentos do painel de aviões. O processo era todo manual e as funcionárias, em sua maioria garotas jovens, foram induzidas a acreditar que a tinta era segura.
Propaganda da Undark, 1921
Embora os químicos da fábrica usassem mantas de chumbo, pinças e máscaras para proteção, cerca de 70 mulheres trabalhavam manuseando o rádio e a tinta sem proteção. Como a tinta não vinha pronta com o rádio já misturado, cada uma das funcionárias misturava sua própria tinta em um pequeno recipiente e, então, a utilizava para pintar os mostradores com um pincel de pelo de camelo. Como os pincéis perdiam a forma após algumas pinceladas, os supervisores diziam às garotas para “apontar” os pincéis com os lábios ou a língua, o que ficou conhecido como “lip, dip, paint” ou “lábio, mergulho, pintura”.
E as garotas foram avisadas muitas vezes de que a tinta não oferecia risco algum. Eles chegavam até a pintar as unhas, os dentes e o rosto para se divertir, já que a tinta brilhava no escuro.
Elas ficaram conhecidas na cidade como garotas fantasma. Geralmente, depois de um dia de trabalho, eles brilhavam no escuro. Isso acontecia porque o ar da fábrica estava sempre contaminado com pó de rádio que acabava grudando na pele, cabelos e em suas roupas.
Contaminação radioativa
Com o passar dos anos, as garotas começaram a ter problemas de saúde. Os primeiros problemas de algumas garotas foram dores de dente, dentes soltos, lesões, úlceras e falha na cicatrização de extrações dentárias. Os dentistas que atendiam as meninas não conseguiam entender o que estava acontecendo. Outras garotas, começaram a ter problemas como dores na coluna, nos pés, nos quadris, no joelho. E surgiram, também problemas como anemia, fraturas ósseas, supressão da menstruação, esterilidade e necrose da mandíbula, condição hoje conhecida como “radium jaw” (tipo de necrose que afeta a mandíbula devido à exposição ao rádio).
Em 1923 ocorreu a primeira morte de uma das garotas. Pouco antes de sua morte, sua mandíbula se desconectou do crânio. Em 1924, cerca de 50 meninas estavam doentes e uma dúzia já havia morrido. Diferentes causas de morte foram atribuídas a elas. Até a sífilis foi usada para explicar as mortes. Esta foi uma tentativa da empresa de destruir a reputação das garotas. Desde o início das queixas dos problemas de saúde, a empresa sempre negou que o rádio tivesse alguma coisa a ver com isso. E a empresa se utilizou de sua influência para que médicos, dentistas e pesquisadores para que não divulgassem nenhum dado.
A empresa, com medo de perder negócios devido à crescente polêmica, contratou um estudo independente sobre o assunto. Os resultados confirmaram as alegações das meninas: elas estavam morrendo devido aos efeitos da exposição ao rádio. Mas a empresa não aceitou e ocultou os resultados. Ao mesmo tempo, contratou outros estudos que apresentaram resultados opostos ao primeiro estudo. E o público continuou a acreditar que o rádio era seguro.
Em 1925, o patologista Harrison Martland desenvolveu um teste que comprovou que as meninas estavam contaminadas com rádio. Ele obteve autorização de uma das famílias de uma vítima, e realizou uma autópsia completa detectando radiação muito alta em todos os órgãos da vítima. A indústria tentou descreditar as suas descobertas, mas as garotas reagiram.
A funcionária Grace Fryer decidiu processar a empresa, sendo acompanhada no processo pelas colegas de trabalho Edna Hussman, Katherine Schaub, Quinta McDonald e Albina Larice. Foram dois anos de tentativas para encontrar um advogado que estivesse disposto a enfrentar a US Radium Corporation. Seu nome era Raymond Berry. O processo judicial avançou muito lentamente enquanto a saúde delas deteriorava. Elas compareceram pela primeira vez ao tribunal em 1928. Duas das mulheres estavam acamadas e nenhuma conseguia levantar os braços para prestar juramento. A mídia logo cobriu o caso e as cinco mulheres foram apelidadas de Radium Girls.
Mesmo com a ação, a empresa continuou negando que o trabalho tivesse alguma coisa a ver com a situação da saúde das garotas. Como elas estavam bem próximas da morte, e não tinham muito tempo de vida, acabaram aceitando um acordo extrajudicial.
Garotas trabalhando no estúdio de pintura da fábrica
Radium Dial Company
Localizado em Ottawa, IL, EUA, o estúdio Radium Dial Company iniciou suas operações em 1922. Eles também pintavam mostradores de relógios, a maioria deles para seu maior cliente, Westclox Corporation. E eles também contratavam garotas jovens para pintar os mostradores usando a mesma abordagem “lábio, mergulho, pintura” dos trabalhadores da Radium Corporation. Quando as meninas em Ottawa começaram a ficar doentes, Radium Dial autorizou vários exames físicos para determinar se suas funcionárias estavam intoxicadas com rádio. As garotas nunca chegaram a receber os resultados.
Nessa época, as garotas não tinham conhecimento do processo aberto por funcionárias da United States Radio Corporation em Orange, NJ.
Em uma tentativa de não utilizar mais os pincéis de pêlo de camelo, mas sem informar o motivo às garotas, a administração introduziu na linha de produção canetas de vidro com ponta fina. As canetas de vidro desaceleraram a produção. Como as meninas eram pagas por peça, elas voltaram a usar pincéis.
Finalmente, quando a notícia dos processos de Orange, NJ, chegou aos jornais locais, a empresa disse às garotas que a tinta usada em Orange era diferente e que o rádio era seguro para ser manipulado.
Em 1927, as funcionárias começaram a pedir indenização pelas contas médicas e odontológicas mas a administração recusou. Essa demanda continuou até que uma ação foi movida perante a Comissão Industrial de Illinois (IIC) em meados da década de 1930. Em 1937, Catherine Wolfe Donehue, juntamente com quatro mulheres, encontraram um advogado, Leonard Grossman, para representá-las e processar a empresa. A essa altura, a Radium Dial havia fechado sua fábrica em Ottawa e se transferido para Nova York. Mas isso não impediu o processo e a IIC deu o ganho de causa para garotas. As garotas conseguiram receber uma pensão anual para o resto da vida.
Legado
A luta dessas garotas ocupa um lugar importante na história saúde no trabalho e dos direitos trabalhistas. Como resultado do caso, foi estabelecido o direito dos trabalhadores individuais de processar as empresas por abuso trabalhista. O caso também influenciou o estabelecimento da OSHA (Lei americana trabalhista contra doenças ocupacionais). A OSHA trabalha a nível nacional contra o abuso no trabalho, reduzindo as mortes por doenças e lesões relacionadas com ao trabalho de funcionários.
Bibliografia
- Liquid Sunshine: The Discovery of Radium – Dartmouth Undergraduate Journal of Science – https://sites.dartmouth.edu/dujs/2008/02/21/liquid-sunshine/#:~:text=Marketed%20as%20a%20cure%2Dall,liquid%20sunshine%E2%80%9D%20(2).
- The lethal legacy of early 20th-century radiation quackery – Washington Post – https://www.washingtonpost.com/health/the-lethal-legacy-of-early-20th-century-radiation-quackery/2020/02/14/ed1fd724-37c9-11ea-bf30-ad313e4ec754_story.html
- History of radiation therapy – Wikipedia – https://en.wikipedia.org/wiki/History_of_radiation_therapy
- Radioactive quackery – Wikipedia – https://en.wikipedia.org/wiki/Radioactive_quackery
- Radium Girls: The Women Who Fought for Their Lives in a Killer Workplace – Britannica – https://www.britannica.com/story/radium-girls-the-women-who-fought-for-their-lives-in-a-killer-workplace